sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Chico Buarque - Valsinha


A primeira MPB. Algo mais digno do que Chico Buarque? Começo por "Valsinha", que é uma das minhas preferidas. Talvez pela ideia que me traz de uma época que eu não vivi - e sou tão apegada na saudade daquilo que não senti.
A primeira vez que li essa letra, interpretei de forma rápida e mais vaga, nem percebi  o "valor hippie" embutido nela. Depois que descobri, me apaixonei mais ainda. Nota: o nome de princípio da música era "Valsinha Hippie". Nota²: A música foi escrita por Chico e Vinicius de Moraes, na década de 70. Nota³: no final, posto aqui as cartas que eles trocaram na época discutindo sobre esta música.


Comecemos a interpretação.


Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar

 Primeiro, ele chega em casa diferente do modo que sempre chega, olhando de um jeito mais quente que o de costume e não xingando a vida, reclamando sempre. Ou seja, era um cara mal humorado (típico homem dos anos 70, estilo bancário), que chegava em casa de cara fechada, com olhar frio para a mulher, reclamando do dia, do trabalho, o que fosse, mas reclamando. E sempre a deixando no canto, com costume de ignorar a mulher. Mas nesse dia, convidou-a pra rodar, ou seja, convidou-a para dançar, sair. A mulher até se espantou.

E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar

Então ela voltou a se produzir, se embelezar, o que não fazia há tempo, já que o relacionamento esfriara. Colocou o vestido decotado, cheirando a guardado de tanto que ficou guardado, esperando para ser usado. Então, mais uma vez reforçando a ideia de que eles eram distantes, deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar. Foram para a praça e começaram a se abraçar: começaram a transar.
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz

 "Dançaram tanta dança": transaram, se amaram, fizeram barulho, gritaram, que até acordou a vizinhança. O dia seguinte, amanheceu em paz. Pego esse "em paz" como uma interpretação de que as coisas passaram a melhorar para o casal, sem mais aquele distanciamente, olhar frio, resmungos do parceiro. 
Pode-se interpretar também que esse é o sonho de toda mulher da época. Enquanto ainda havia um modelo de vida no qual a mulher satisfeita em casa e o homem trabalhando, mesmo isso afetando as relações pessoais do casal, a mulher, por vezes, queria só que o homem fosse de tal forma como discrito no enredo da letra da música, daquele jeito carinhoso, daquele jeito jovem, que ama sua companheira. 
Não podemos esquecer das referências que são bases da letra: a ditadura militar da época, o modo de vida que se levava desde os anos 30, o conservadorismo e o movimento hippie que vinha tomando cada vez mais poder, desde 60, com todo o movimento de contra-cultura, a ideologia power-flower, beatlezíaco etc. 

As cartas: (retiradas pelo site oficial de Chico Buarque)

Notas sobre Valsinha
Por Vinicius de Moraes
Mar del Plata, 24/01/71

Chiquérrimo:

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a v., mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11.
Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa Hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que voce acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à idéia. Escreva logo, dizendo o que v. achou.

VALSA HIPPIE

Um- dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar/
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: /Vamos nos amar
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços coma a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.

Vinicius de Moraes


Resposta de Chico:

Por Chico Buarque
Rio, 2 de fevereiro (sem o ano)

"Caro Poeta,
Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí.
Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.
Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
- Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
- Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
- A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Chico Buarque.

10 comentários:

  1. Gostei mais das cartas trocadas entre eles do que a "interpretação" da música. Mas tá valendo!

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  2. Genial hahaha...eu tinha interpretado de uma forma totalmente diferente. Eu tinha pensando que ele era infeliz (e não maldisse a vida tanto quanto era o seu jeito de sempre falar) no casamento e tinha finalmente tomado coragem e convidado o seu verdadeiro amor na frente de todos (que era correspondido por ela). Pensei isso porque "o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz", como se tivesse sido uma coisa errada, mas o amor era muito grande e no fim foi perdoado. Porra, eu gosto mais da minha interpretação, por isso que as vezes o poeta nem comenta. No final nossa mente ver o que quer.

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  3. kkkkkkkkkkkkkkkkk me rachei de rir da carta do buarque! Adorei interpretação e as cartas...muito top, viajei aqui!

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  4. Amei as cartas , mentes geniais....A valsinha é tão atual nos dias de hoje que assusta...

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  5. Amei as cartas , mentes geniais....A valsinha é tão atual nos dias de hoje que assusta...

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  6. Amei as cartas , mentes geniais....A valsinha é tão atual nos dias de hoje que assusta...

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  7. Eu amo essa música, me sinto como se estivesse vivido comi naquela épocaonde os abraços tinham tanto valor quanto se deitar com alguém, mas fico feliz de viver o hoje onde as mulheres podem viver as emoções que quiserem sem serem reprimidas. A música é muito linda e expressou direitinho a vida de casal daquela época.
    Também pensei como você dá primeira vez em que escutei, mas essa cara (do Chico barque) me fez ver a realidadedos velhos tempos.

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  8. Gostaria de saber se o texto predomina a função apelativa , a letra apresenta uma narrativa ou trata- se de um texto predominante temático??

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  9. Gostaria de ter conhecido o blog na época.

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